sábado, 5 de abril de 2014

DE E POR WONER: "A MINHA CABEÇA SAI SEMPRE CORTADA (VOL. 2)" (2013, Ed. Autor)

João Figueirôa é Woner, um dos jovens nomes que vai construindo um novo mapa para o hip-hop nacional depois de uma época de glória e ascensão ao mainstream que vai ensinando lentamente as vantagens de quebrar com o que é mais expectável.
Contudo, em relação ao passado recente, as coordenadas de partida estão mais ou menos certas (Vila Nova de Gaia) e há mesmo um grupo de suporte e evolução, o colectivo Diatribe que partilha com Neatro e Suary.
A pessoalidade de certas referências, a serem desconstruídas ao longo da trilogia "A Minha Cabeça Sai Sempre Cortada", convive de forma feliz com a escatologia linear de Edgar Allan Poe na capa e do lado mais negro de uma biografia (do) dia-a-dia, com cenas cortadas por cada uma das 16 faixas deste trabalho ao ritmo de "Happiness" de Todd Solondz.
Antes do fecho de ciclo, 2014 já trouxe uma compilação de temas que ficaram de fora deste volume da trilogia, intitulada "Cortes da Cabeça Cortada/Coisas Que O Boi do Amor Faz" e poderá ainda trazer mais uns quantos discos a solo. Resolvemos também não perder mais tempo e pedimos palavras ao autor.























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"Este é o segundo volume de uma trilogia de nome “A Minha Cabeça Sai Sempre Cortada”.
Tentei criar um álbum com uma narrativa do início ao fim, para ser ouvido pelas pessoas como se estivessem a ver um filme.
Esta história é, em grande parte, sobre depressão (para já).
Como vou estar a descrever o que cada música representa na história vou-me referir na terceira pessoa, isto porque se o álbum tem uma narrativa eu não passo de uma personagem. Esta personagem sou eu, claro. Os sentimentos, os pensamentos, as experiencias, tudo isso é meu, ainda que a história seja fruto da minha imaginação com elementos de filmes, animes e jogos."



1. AMCSSC

“Olá, o meu nome é Darko...”. Pode parecer insignificante, mas é um dos pontos mais importantes para a percepção do trabalho que estou a desenvolver. Chamo-me João na “vida real”, Woner no que toca a trabalhos musicais, e digo que me chamo Darko (algo que, segundos depois, é corrigido por uma voz que se deduz ser o meu psiquiatra).
É uma faixa composta por três partes. A primeira começa com um diálogo que dá a conhecer que a personagem está numa consulta (num grupo de várias pessoas) porque se tentou suicidar. Começo a cantar na segunda parte com uns acordes de piano repetitivos e desinteressantes (é também assim que a personagem se sente) e na terceira parte, nos últimos minutos, o instrumental muda e fica mais “animado”. Tirando a parte inicial do diálogo, é uma música muito pessoal. Creio que foi a primeira faixa pública em que falei abertamente sobre autoflagelação, odio próprio, isolamento e amigos imaginários.
Inicialmente a música ia-se chamar “APSE” (As Pessoas São Estúpidas), mas faz mais sentido “AMCSSC”.


2. Prozac 2

Esta faixa é um remake (talvez não seja o termo correcto) de uma que integra o primeiro volume que fiz nos princípios de 2011. Lembro-me que fui atuar com o meu grupo, Diatribe, e depois fui a casa do Suary. Ele estava a mostrar-me instrumentais e a improvisar. Gostei muito de um deles, cantei a letra da “Prozac” porque não gosto de improvisar (de forma séria) e ficou. A letra surgiu com o terminar de uma relação. Quem amava deixou de estar presente e os comprimidos preencheram o vazio, nesta altura ainda não era de forma destrutiva, faziam-me sentir bem e estavam presentes todos os dias.


3. Cão

Também em 2011, andava a queixar-me de falta de beats. O Neatro deu-me este no mesmo dia em que fiquei com o da “Prozac 2”.
Embora a “onda” principal do meu trabalho seja depressiva, gosto sempre de ter uma ou duas músicas “estúpidas” com elementos de autocrítica algo engraçados (técnicas para quebrar o gelo). Esta é uma dessas faixas.
Quem me conhece sabe que eu e os cães não nos damos bem. Eu acho que são animais bonitos, mas eles não gostam de mim e na maior parte das ocasiões os donos são completamente irracionais. O tema surgiu do seguinte pensamento: o cão pode ladrar em qualquer lado, ir com as patas contra qualquer pessoa ainda que sujas por tocarem no chão, morder quem entender como ameaça, praticar o acto sexual onde bem entender, e aos olhos das pessoas continua a ser bonito e querido. Então e se eu fizer tudo isto? Será que não vou levar logo dois socos na cara? Não me vão insultar? Não vou estar a interferir com a liberdade de cada um? Vou, e é exactamente por isso que vai ser engraçado.
Esta música não é uma crítica aos cães (que honestamente não têm culpa de nada) nem aos donos (que dizem sempre: “Ele não morde, ele não morde...”, até morder). É uma autocrítica, porque eu é que sou um universo de imperfeições. Se estão todos bem menos eu é porque o problema reside em mim (é assim que se deprime numa música aparentemente engraçada).


4. Cheeseburger (c/ Neatro)

Esta foi gravada tão em cima da hora que acabei a mistura a dias de sair o álbum. A ideia surgiu quando estávamos na paragem do autocarro. O Neatro estava a comentar um vídeo que tinha visto sobre a forma como fastfood se degradava. Eu disse que não queria saber, pois o que me apetecia mesmo naquele momento era um cheeseburger e não me importava se morresse mais cedo. Ele disse que preferia comer algo saudável para poder viver mais tempo que as outras pessoas. Foi assim. Durante a música toda estamos a contrariar as ideias um do outro.
Na história do álbum esta faixa mostra um pouco mais sobre os pensamentos depressivos do personagem e mostra como os amigos reagem face à nuvem de negatividade que paira nele.
(aos 48 segundos começa um dos meus momentos preferidos)


5. Eu Não Nervos

O título indica uma situação em que quero dizer “não tenho nervos” ou “não estou nervoso” e me engano e troco tudo. O erro torna evidente que estou nervoso quando queria dizer que não o estava para passar despercebido (sou tipo aquelas pessoas que tentam passar despercebidas e acabam por estragar as coisas e chamar a atenção sem querer).
A música começa com um som de theremin e um excerto de um dos filmes em que me baseei para criar a narrativa. O que quero que se retenha é que a personagem tem pensamentos obsessivos que a consomem, e vê tudo o que a rodeia como uma ameaça. Tudo a irrita e isso começa a torná-la agressiva. Neste ponto da história não estamos a falar simplesmente de uma depressão.
O instrumental é dos mais recentes que fiz neste álbum e é dos que gosto mais.


6. O Bebé Levou Um Tiro

Graças a esta música recebi dois emails de pessoas que levaram a mal o tema. Existiram mais 2 versões desta música. Uma que fiz em 2011 que não era nada agressiva e falava sobre a minha infância em Lisboa, e outra que seguia a linha de pensamentos “agressivos” da original com um instrumental todo tocado meio psicadélico. Optei pela versão que está no álbum por estar mais crua.
Esta música desenvolve a linha da faixa anterior e aborda os chamados pensamentos intrusivos. É uma conversa com o psiquiatra em que o personagem admite ter pensamentos agressivos para com outras pessoas, sonhos em que mata sem motivo aparente pessoas que estão felizes num jardim (mais um elemento de outro filme). Aborda mais uma vez, depois do refrão, a insegurança face às pessoas que encontra no seu caminho, e o facto de se meterem com ele só agrava o seu estado psicológico. Quando parece acabar a música ouve-se uma linha de baixo com uns snares algo descoordenados enquanto “grito: “Eu não sei o que digo!”, várias vezes. Isto serve para dar a entender que o personagem sofre por pensar em fazer mal às pessoas, ou seja, não é algo que controla. Depois disso entra um instrumental diferente todo tocado que, sinceramente, por muito piroso que esteja, é dos que mais gosto. No final paira a ideia: “... Eu não te quero fazer mal... A culpa não é minha... Foge... Tu tens de fugir de mim... Morre...”.


7. Lápis de Niizuma

Nos últimos segundos da faixa anterior ouve-se a voz do psiquiatra a dizer para a personagem tentar relaxar e fazer algo que goste, como desenhar. Durante a música vê-se que a personagem tem uma imaginação muito fértil enquanto desenha histórias nas paredes do quarto, e que tem um desejo muito forte em ser o herói que salva o mundo (talvez para que as pessoas que não gostam dele o aceitem). A meio, percebe que se deixou levar pela história que estava a desenhar e que perdeu a noção da realidade momentaneamente. Debate-se ainda com o ódio que sente pelas pessoas que salva e pondera se deve ser o herói ou o vilão.
A última parte da faixa tem referências “escondidas” ao Super Sonic, Crash Bandicoot, Final Fantasy e Kingdom Hearts, isto porque a música revela, no fundo, a solidão e a falta de vontade de viver esta vida, e nesses momentos as memórias de infância e adolescência são reconfortantes.
(esta música vai ser muito importante)


8. Casa de Gelo

Instrumental que mais me agrada neste álbum. Vou tentar explicar por partes. A música serve para dizer que a personagem revela ideação paranoide e tem ataques de pânico. Digo “...o gelo é uma metáfora para o medo que sinto”, logo quando dou a entender que não há saída do quarto porque está coberto por gelo estou a dizer que tenho medo de sair. Quando digo que faço um boneco de neve para ser o meu melhor amigo estou a dizer que convivo tanto com o medo que me habituo à presença dele. Perto do fim, antes do instrumental mudar digo “hipotermia”, estou a falar de um ataque de pânico. Tive a ideia de fazer esta metáfora do gelo/medo e de fazer um boneco de neve amigo que se vira contra mim em 2011. Na altura era num instrumental do Neatro. Claro que, mesmo tendo a ideia na cabeça não escrevi, deixo sempre as coisas a cozinhar até chegar o momento.
Já em 2013, estava eu a stressar a tentar fazer o álbum e não reprovar a nenhuma cadeira, e vi que era muito complicado para o Neatro refazer o instrumental (também por falta de tempo fora de aulas). Um dia sentei-me com o teclado, lembro-me que andava a ouvir uns álbuns de música electrónica/experimental e tentei fazer algo inspirado nisso. Algo com ambiência, com rara aparição de snares cheios de reverb, um piano no fundo também ele com reverb, um coro (muito piroso, mas que adorei), e aquele sintetizador que entra aos 2:23... Eu gostei. Não é o que o pessoal do rap procura e gosta, mas era aquilo que eu queria explorar. O instrumental muda completamente aos 3:24, é algo que gosto muito de fazer (o vol.3 está cheio dessas coisas).


9. Insónias Diurnas (c/ Suary)

Claro que tinha que ficar com este beat do Suary.
De noite a insónia não deixa dormir, e de dia o “sono” (ou desinteresse) não nos deixa vivenciar as coisas à nossa volta. Portanto, estar acordado de dia é igual a estar a dormir (como diz o Suary), e de noite a paranóia decide bater à porta.
No final da música, à semelhança da faixa com o Neatro, a personagem é de novo abandonada pelos amigos que já não conseguem suportar o “drama”.
Em Julho ou Agosto já tinha a faixa gravada, pronta para masterizar e lembrei-me de um instrumental que o Suary tinha feito num dia em que estivemos a produzir e pensei que ia ajudar a consolidar a música geral. Quando acabamos de cantar entra esse instrumental (quase no fim), acho que resultou muito bem.

10. O Reflexo de Nada/ O Convite

Foi a primeira faixa que produzi e escrevi neste álbum. Nesta altura ainda recorria a samples para fazer instrumentais. Estava a ver um filme com a minha irmã, que tem um final algo emocionante para quem é da minha geração. No meio da emoção ouço o sample... Fui logo procurar. Encontrei, fiz o beat, escrevi, gravei, ficou feito. No que diz respeito à história do álbum esta faixa é um reafirmar da depressão, dos cortes, do isolamento, ódio próprio, etc.
É também a faixa em que a personagem se mentaliza que vai morrer.
Quase dois anos mais tarde decidi juntar um instrumental, no fim, de nome “O Convite” porque achei que a faixa original estava incompleta, faltava algo. Não é que este tenha uma produção incrivelmente boa, não era esse o objectivo. Serviu para completar. É um instrumental inquieto, incerto, a bateria não está bem no tempo, apetece pôr “direito”... É bom porque as pessoas deprimidas também não se sentem “direitas”.


11. Demasiado Tempo

Uma vez que a personagem decidiu morrer, não tem mais que ter medo ou vergonha de dizer o que sente. A música anda em torno disto. O objectivo é convencer o psiquiatra de que não dá para adiar mais os comprimidos e que têm que ser receitados sem demora. O final da música tem um excerto de mais um filme em que me inspirei. “Until the day you die, you, not me, will always be shit!” é a mensagem final que a personagem deixa às pessoas que a magoaram antes de se fechar e acabar com tudo.

12. Frágil Porcelana

Estive quase para não fazer esta música (ainda bem que a fiz porque foi a que as pessoas mais gostaram). Já tinha todas as faixas ordenadas e escritas num papel. Se não me engano, isto foi em 2013. Já não usava samples para fazer instrumentais e houve um dia em que me apeteceu voltar a fazê-lo. Ainda ponderei se devia escrever ou não. Enfim, correu bem.
Na história do álbum esta faixa  representa as últimas horas antes do suicídio. O personagem passa o tempo que lhe resta a beber no chão do seu quarto com a mobília toda destruída. Embebeda-se porque no fundo quer ficar. Só não fica porque não se sente aceite, na sua cabeça a culpa é das pessoas (factor muito importante para o vol.3). Desesperado diz: “eu também me odeio”... Podemo-nos dar todos bem porque também me odeio, finalmente temos algo em comum.  
No final há um pequeno interlúdio em que repito algumas vez: “Eu sou o palhaço triste”. Uma referência a uma música do primeiro volume e também um aviso aos artistas de rap que começam agora a pisar a sonoridade “alternativa” e a temática depressiva. Eu sou “O” palhaço triste.


13. 05 x gm06 cazorp

Esta faixa serve para o ouvinte descansar um bocado. Do ponto de vista da narrativa, se atentarmos ao nome está escrito : prozac 60mg x 50. Este é o momento em que o personagem toma 50 comprimidos de 60mg de prozac, ou seja...overdose.


14. 005

Bêbedo, momentos antes de o excesso de comprimidos surtir efeito negativo, aprecio o ambiente que me envolve. É uma última reflexão antes de cair do 5º andar. Se é para recorrer ao suicídio é para partir em grande, ou seja, bêbado, com 50 comprimidos de prozac de 60mg, e uma viagem do topo do prédio até ao chão. Tudo isto de gravata, claro.
O instrumental foi feito pelo Raikuaza. Inicialmente era outro beat, mas ele perdeu-o. Foi passando o tempo, e um mês antes de sair o álbum decidiu dar-me este, que foi um beat pelo qual eu tinha uma fixação desde que o ouvira pela primeira vez.


15. O Grito do Silêncio, a Lua e o Beijo

Esta diz-me muito. Não pelo tema, limitei-me a seguir a narrativa com base no que sinto. O beat marcou uma fase da minha vida em que fiz imenso trabalho musical e muito pouco para a faculdade. Não sei dizer porque me marcou, mas sempre que ouço o instrumental lembro-me desses tempos em que ia para as aulas fazer instrumentais e trabalhar no álbum, nem nos intervalos parava. Às vezes, acordava cedo, chegava lá, faltava e ficava algures numa sala a ”produzir”.
Voltando à narrativa. Isto é quase como se a personagem se estivesse a ver a ela própria estendida no chão. Como se o tempo tivesse parado e o sangue ainda não estivesse a cobrir o cimento. É a experienciar a morte. É um adeus.

16. 28 06 42 12

Fiz este instrumental a meio de uma aula do meu segundo ou terceiro ano de faculdade. É uma faixa sem voz, algo melancólica, que encaixa no álbum sendo que, segundo a história, morri na música anterior. É o final do álbum. Contudo, nos últimos segundos ouve-se uma voz distorcida a dizer: “Acorda”. Algo para dizer que vai haver um terceiro volume (ou não seria uma trilogia), ou que talvez não tenha morrido, é novamente uma menção a um filme. A voz pertence a uma das personagens principais do vol.3 (que foi mencionada durante o álbum).
É desta forma que acaba o “A Minha Cabeça Sai Sempre Cortada (Vol.2)”.




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