domingo, 12 de maio de 2013

SAMUEL ÚRIA - O GRANDE MEDO DO PEQUENO MUNDO (2013, Flor Caveira/Norte Sul)





“O Grande Medo do Pequeno Mundo”. Ter um medo que é grande dum mundo que é pequeno. É um retrato certeiro, mas também uma maneira sensata de ver a coisa. Imaginem ter um pequeno medo de um mundo grande. Aí a coisa corria pior, que medo em boa dose para impor respeito nunca fez mal a ninguém. Pequeno ou grande, todos o cultivamos. Mais à vista, menos à vista, bem disfarçado com doses generosas de testosterona (ou não), ele está lá, e esse é o facto. Samuel Úria foi à procura dele e pelo caminho escreveu um disco.

Os quase quatro anos de espera desde “Nem Lhe Tocava” não serviram senão para aguçar o apetite para este novo trabalho do frequentemente intitulado “Trovador de Patilhas”.
A comparação entre os dois álbuns é inevitável e legítima. "Nem lhe Tocava" foi um álbum de que se gostou muito por estas bandas. Era, portanto, de adivinhar que o seu sucessor, como é costume nestes casos, ficasse aquém do esperado ou, pelo menos, não entusiasmasse tanto. Puro engano. Este "O Grande Medo do Pequeno Mundo" é um disco que, em termos de arranjos, prima pela excelência, e em que a excelência da letra cantada é bem servida por momentos musicalmente sublimes. É um trabalho mais intímo e é um disco que, para ser amado, deve ser ouvido com calma, se possível no calor do lar e de preferência com uma camisola de lã vestida. Porque, se quisermos, podemos tornar a degustação deste álbum, mais do que num momento agradável de boa música, num exercício de descoberta de um domador da língua portuguesa como há poucos por estes dias.
Como sou um grande chato apetece-me analisar cada canção do disco individualmente:

Prelúdio
A guitarra a soar e os coros lá bem alto, tudo muito devagarinho – uma entrada de mansinho. Mas se calhar não tão de mansinho (“Voltei, porque a espada é a lei”). Este disco tem um toureiro na capa. Mas as bandarilhas desta vez ficaram nas costas do toureiro. Sorte a do touro, este despeito pela tauromaquia. E também, diga-se, faz sentido que assim seja pois, aqui, não é o touro que é domado – são os corações de quem ouve ao querer ouvir. A coisa começa com este quase-um-minuto de doçura.

O Deserto
O banjo, instrumento central deste trabalho, marca posição logo a começar. Uma canção, parece-nos, sobre o medo de estar no mundo (profunda e obviamente ligado ao título do álbum, sendo o supracitado tema quase transversal a todas as canções) e que conta com a ajuda de Jorge Rivotti (graves cheios de intenção) para a explicação de como as “escolhas pequenas” e os “arbítrios totais” levam “aos medos de sermos nós”. Aqui começa-se a perceber do que é que a casa gasta em termos de tratamento da língua, e o resto das canções confirmam as expectativas. Ou melhor: revêem-nas em alta para o futuro. Bonito desenho do piano, que esteve a cargo de Miguel Sousa. E os coros na recta final chegam a ser divertidos de tão bem articulados, galvanizados pelo rufar da tarola.

Lenço Enxuto
Uma senhora-canção, com uma senhora-colaboração - Manel Cruz é o convidado desta feita. E que grande canção, sobre ser homem e as consequências disso para o fluxo lacrimal – ou ausência dele. Úria pede precisamente que lhe mostrem a “receita do caldo lacrimal” e sentencia ainda “um homem só não chora porque não consegue” e “um homem para que chore não pode chorar”. Fôramos nós mulheres e tudo seria mais fácil, meus amigos. Ah pois é.




Forasteiro
Primeira cantiga single do disco é, no entanto pouco representativa do que é o álbum no que ao som diz respeito. Não menos sublime, no entanto, com um grande trabalho com a banda (de luxo) que acompanha Samuel Úria. A letra, aqui, funciona muitíssimo bem num trabalho notável de sucessivas aliterações e consonâncias. Resume muito bem a problemática do (grande) medo do (pequeno) mundo, a tal que é transversal às canções do disco.

Essa Voz
Uma ode a uma voz qualquer, a uma grande voz. Numa toada country, que é ainda mais evidente quanto tocada ao vivo, a canção desfaz-se em elogios à dita voz (“Silêncio é de ouro, mas só aperitivo se é prelúdio á tua voz”). Destaque para o hilariante neologismo “nem sempre a voz sinatrará”. Sinatrar: inventa-se, pois, aqui um novo verbo. Oiçam esta, por amor de Deus. A minha favorita.

Eu Seguro
Dueto com Márcia, numa toada diferente das restantes canções. Balada que soa a contemplativa, meditativa, mas que é uma das mais bonitas canções de amor produzidas nos últimos tempos neste canto da Europa.

Espalha Brasas
Nesta canção Úria arranha o banjo, que espreita por entre a impetuosidade da banda. Fala sobre espalhar brasas cantando, como quem diz, espalhar a palavra pelos cantos desse mundo pelo canto bem torneado da mesma. Refrão forte: “Se não falas irão cantar pedras rolantes”. Como o leitor decerto compreenderá não há aqui qualquer referência a uma das bandas que mais marcou a história do rock’n roll...




Estrondo Mudo
Pode passar despercebida no meio de tanto virtuosismo com que este disco está atulhado. Mas, desenganem-se os ouvintes mais incautos, temos aqui uma canção que é assinalável na sua simplicidade. O piano minimalista cria e acondiciona o ambiente onde o violino dança mais à frente. “Há quem chame violência à decência de ser forte”.

Pequeno Mundo
A canção mais ácida do disco, curiosamente faixa que a modos que dá nome ao disco. Uma sátira aos que vivem na pequenez e condicionados pelos seus lamentos. “… trajar-te é esforço inglório. Existir por vezes deixa-te ao contrário, que sais nu do armário”. Em crescendo, acaba a destilar energia e a fazer adivinhar uma faceta mais virada para o metal do que a do baladeiro que diz que não é baladeiro. Será?

Em Caso de Fogo
Colaboração com Gonçalo Gonçalves, com uma assinalável prestação vocal deste. Guitarra sabiamente dedilhada e guitarra electrificada e palhetada e piano oportunos. “Em caso de fogo eu devo ser território litoral, mas prendo-me com o acessório”. É ouvir.

Armelim de Jesus
Vá-se lá saber porquê, a canção com que menos simpatizo. Não é que não goste: é não simpatizar no imediato, que são coisas diferentes. Fala de um homem honrado, o tal Armelim de Jesus, e faz a exaltação das suas qualidades. Até aí tudo muito bem. Acho que é mesmo a melodia que não encaixa cá dentro, mas é um problema meu, o leitor vai adorar com toda a certeza. De referir o bom trabalho do Jónatas Pires na guitarra-líder.

Triunvirato
Aqui entram em cena dois embaixadores da boa música portuguesa, de seu nome António Zambujo e Miguel Araújo. Duas boas escolhas para cantar uma canção sobre três génios que são aqui bajulados, venerados, posto num pedestal que é deles por direito. Referências, claro está, a “Tower Song” do grande Leonard Cohen, “Man in Black” do enorme Johnny Cash e “Slow Train” do enormíssimo Bob Dylan. A adjectivação não está ordenada quantitativamente, diga-se de passagem, pois tais talentos não são mensuráveis. Um dos grandes momentos do disco.

Poslúdio
Úria despede-se da mesma forma como começou. Não é só a melodia que é igual, é também o calor e o intimismo. Faz pensar o quão bom teria sido ouvir este disco à lareira no Natal de 2012. Não há qualquer problema, que guardamo-lo bem engavetado e faça-se-lhe justiça pelo final de 2013.

Este é um grande disco. É difícil perceber como este artista não está mais que consagrado e canonizado por uma faixa mais alargada de ouvintes. Eu quero viver num país em que o Samuel Úria dá concertos em todas as terrinhas, eu quero viver num país em que o Samuel Úria é um campeão de vendas. Oiçam, com calma e vontade, que vale a pena: este disco em particular, aprecia-se mais a partir da, vá, terceira audição. Um grande candidato a disco do ano, e talvez não o melhor para já porque a música portuguesa tem sido fértil em surpresas. 

Bernardo Gonçalves




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