domingo, 23 de setembro de 2012

RA - Rancor (Lovers & Lollypops, 2012)





Oriundo da cena doom de Setúbal, Ricardo Remédio lançou o EP Rancor, que mistura as suas antigas influências, de quando era teclista nos Löbo, com música eletrónica ; um rumo que quis definitivamente adotar no seu novo projeto RA – Rei Abutre. Negro, este EP ajuda a conhecermo-nos melhor, realçando a parte mais sombria de cada um de nós. Desse modo, a análise das quatro músicas que compõem Rancor assemelha-se a um acompanhamento de um filme de terror, aéreo e lírico na negrura, com o objetivo de expulsar de nós a parte desconhecida, ou melhor, aquela que não queremos ver e que deixamos ao julgamento dos outros.

O(s) Cobarde(s) ou aqueles que não ousam ouvir. O(s) Cobarde(s) ou aqueles que não aceitam o inferno. O(s) Cobarde(s) ou aqueles que não se ouvem a eles próprios. O(s) Cobarde(s) ou aqueles que simplesmente não (se) aceitam.


Envolvido na atmosfera assombrada dos primeiros instantes do álbum Rancor, sinto-me logo atacado : a angústia que sinto não será apenas a que eu tenho em mim ? Magoado na minha autoestima, encho o peito e sigo em frente, sem medo. Atravesso as fronteiras sombrias semeadas de urtigas enegrecidas, procuro enfrentar o meu mau-estar avançando e mostrando-me a ele, rodeado de vozes fantasmagóricas e de uivos de lobos permanentes. Até à minha salvação: a esperança mesclada aos primeiros sons de teclado, lentos, aéreos, planantes. Acolhido desse modo, acredito que me tenham aceite antes mesmo de eu ter decidido entregar-me. E se me aceitam, também me aceitei.



Mas o tempo é ainda de reflexão. Contemplam-se visões opostas, desafiam-se, tentam perceber-se, encontrar uma semelhança. Tudo se torna mais melancólico numa quase dark wave que não se quer apagar. E a música acaba.
A lentidão do Rancor assemelha-se ao percurso sinuoso que me é oferecido pelo artista. Não é fácil alcançar-me, não é fácil alcançá-lo. Como dois corpos que se conhecem ainda há pouco, os primeiros toques são subtis, mesmo que a ousadia ganhe em força ao longo do tempo. Quanto mais ele passa mais ganho confiança e me deixo levar pelo ritmo que se torna então mais completo, acelerado. A batida ganha cor na negrura, e tudo se embala. Preparo-me a sofrer as consequências da minha pouca abertura mas espero, firme, com as certezas de cair em boas mãos. Tudo isto para um castigo que nunca mais chega, que nunca vai chegar. Aí, o meu Rancor torna-se superior ao do artista : queria aquele último golpe fatal. Queria o meu próprio sofrimento.

Mas o que vale a confiança nos tempos que correm ? A Paz Podre, declarada aos poucos, e o lado habitado que emerge e me testa de novo. A angústia, lobos, o medo, uivos, o negro, fantasmas. Em pleno No Man’s Land, esta música define a efemeridade do nosso estado, entre a entrega total e a reflexão.

Em O Inferno são os outros, a batida é mais forte, sinal de despedida fúnebre. Procura-se o ângulo de ataque, o ponto fraco, entremeiam-se alguns sons mais dubstep, já não existem gentilezas, ataca-se com os sons mais saturados e fortes possíveis, destrói-se por completo o ouvido do ouvinte, mistura-se o sonho ao pesadelo, a vida à morte, no fundo tudo é o mesmo. O velório pode acabar sem nunca termos ido, a marcha fúnebre desafina. O Inferno são os outros, aqueles que nós somos, o reflexo da parte de nós que nos assusta, que nos destrói, seleciona, põe à parte.

No meio de tanta sensação confusa, pouco importa se estamos vivos ou mortos, o importante é ter estado, ter ouvido este álbum, um hino à confusão dos sentimentos. E como diria Jean-Paul Sartre de quem se inspira Ricardo Remédio no último som : « Há uma quantidade de gente no mundo que está no inferno porque depende em demasia do julgamento do outro. » Resta saber se a música do RA não é uma espécie de catarse que nos permite também entender-nos a nós próprios.







Mickaël C. de Oliveira




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